quarta-feira, setembro 29, 2004

Vale a pena ler este excerto de um artigo de 'A Capital'

O medo escreve-se com sangue

Em Portugal há jovens que se auto-mutilam. Muitos jovens. Que vivem num sofrimento psicológico tão intenso que se ferem a si mesmos para trocar dores, as feridas cumprindo temporariamente a função de sedativos. Mas as feridas são também gritos que anunciam um sofrimento a pedir ajuda. Tentam comunicar. Ouvir e compreender são os passos-chave para a cura.

por: ANA PAGO

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
e estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

(Eugénio de Andrade)

Acabou de tocar para a saída e Sara refugia-se atrás do pavilhão de Educação Física da escola, um dos poucos locais que ainda lhe traz alguma paz de espírito. Não muita, é certo, que isso é coisa que não tem conseguido agarrar nos últimos anos. Mas pelo menos ali o vazio não é tão intenso. Ou se calhar é. Se calhar é mesmo só o Gil que lhe fica mais longe do pensamento, assim à distância daquelas paredes.
Seja o que for, não interessa. Nada importa mais. As coisas são o que são e ela apaixonou-se pelo rapaz errado. Grande novidade! Já devia estar habituada, com o corpo que tem. Os rapazes que se interessaram por ela (e foram poucos) deviam ser todos loucos ou ter péssimo gosto. Bem vistas as coisas, nem sequer gostou a sério de nenhum. Foi tudo superficial, sem cumplicidade nem grandes falas, demasiado fugaz. O Gil foi o único que amou de verdade. Que ama, nada a fazer. Mas esse só sabe exibir a boazona da namorada pela escola, nem percebe que ela, Sara, também existe.
Que desespero vê-los por ali, de mãos dadas! Desespero de ser gorda e sentir-se constantemente na mira das raparigas da turma, sempre aos cochichos e sorrisinhos parvos. Tanta raiva de si que a estrangula e consome! Se ao menos ele não lhe despertasse aquela imensa necessidade de ter alguém com quem falar, a quem se entregar... vontade de não estar só...
Mas nem nisso tem sorte, porque o Gil é realmente um doce de pessoa. Sorri-lhe sempre, quando se senta na carteira ao seu lado. E conta-lhe episódios engraçados do karaté e das aulas de viola e dos dias que são os dele - e desde há uns meses também dela, Sara, suspensa de cada palavra e de cada um daqueles momentos únicos que se tornaram mais importante que a sua própria vida. Aquela vidinha que já nem sente e só vai conseguindo ficar mais desprovida de significado a cada dia que passa, atirando-a exaustivamente para longe de si mesma.

(...)